terça-feira, 3 de abril de 2012

Fragmento 030412


“Não queria pensar nisso agora; voltou para o cheiro de capim...”

Concentrou-se: cheiro de capim, cheiro de capim... inútil.
As buzinas, os faróis, o caos da hora do rush o tragavam de volta para aquele inferno e ele sentia dissolver-se na multidão. Parecia que pela primeira vez observava de verdade aquela miscelânea de gente. O que era aquilo? Frenesi de olhos ávidos de sabe-se lá o quê e cegos para o entorno. Ouvidos conectados em celulares ou mp3. Bocas com gosto de chiclete gasto falando com alguém que não está ali, como se falassem sozinhas. Narizes entupidos de cheiros cruzados. Contatos imediatos com a ausência: de tato. Sentidos embotados. Lembrou-se da canção do Chico... “Construção”: “seus olhos embotados de cimento e tráfego”. É, a canção ainda era válida, com a diferença que agora eram todos os sentidos que estavam embotados. Mas, pensando bem, ao menos tato ainda existia sim: a gente agora não pede mais licença; passa por cima. E então é possível sentir o “contato humano” atropelando calçada a fora.
Contato humano: o que era isso? Toque de corpos, pele? Lembrou-se da garota da última vez: pele branca, cabelo vermelho, beleza de revista, celular gravado pela manhã antes dela desaparecer... qual era o nome dela mesmo? Sentiu frio. O termômetro digital no meio da avenida marcava 26ºC; quente para as 19:30 h de um dia de outono.
Outono... a janela de casa, no cair da tarde, emoldurava a paisagem: as árvores se perpetuavam como estátuas nuas em contornos imprevisíveis; o vento esculpia imagens tão etéreas quanto efêmeras ao erguer as folhas do chão. O cheiro de feijão se infiltrava na fantasia do mundo fantasmagórico daquela hora outonal, aumentando o apetite e trazendo a sensação de realidade de que mais um dia terminaria em paz. Cheiro de feijão... Nunca mais sentiu "aquele" cheiro de feijão.
Ele se deu conta de que estava com fome, mas era melhor esquecer. Não ia jantar, não dava: tinha que esperar o pagamento. Ainda bem que faltava pouco: quatro dias. Começou a pensar no que iria jantar dali a quatro dias... humm... ao menos por um dia, ele iria comer gostoso de novo. Péssima ideia ter prestado atenção na fome; enquanto não se pensa nela, ela parece menor, um incômodo não identificado. Agora, não ia ser fácil despistar a danada. Pensando bem, achava que tudo era meio assim: o que não é bom, a gente ignora, faz de conta que não existe. Afinal, a gente inventa tudo, não é mesmo? Pra que inventar de sentir coisa ruim?
Mas aquela gente ali absurda, ele não tinha inventado não. E ele era completamente ignorado por aquela multidão. Sinal que, para eles, ele não devia ser boa coisa... Essa sensação não era boa. Pra que ficar pensando nisso? Era melhor fazer como eles: não ver ninguém. Pensando bem, ele sempre tinha feito isso... por que agora tinha cismado de VER todo mundo, tudo aquilo?
Sentiu a pressão do povo se aglomerando em volta, esperando o semáforo abrir para atravessar a avenida. O “homenzinho vermelho” está queimado, resta esperar acender o verde. O empurra-empurra é incômodo; as pessoas mal se olham e quando o fazem é com cara de saco cheio. De quê? Talvez estejam cansados e com fome como ele; talvez também sintam o frio da solidão. Talvez a cara de “poucos amigos” seja uma máscara que deva servir como armadura caso alguém resolva saber realmente “quem é você”.
E, realmente, quem era ele? Ele também fazia aquela cara de “poucos amigos”, embora tudo o que quisesse naquele momento era um prato sincero e um abraço quentinho. Foi então que ele a viu...

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