Cartório, banco, correio, farmácia.
Fila, fumaça, buzina, inferno.
Cansaço.
Café!!!
Entro numa dessas padarias high tech que povoaram maravilhosamente a Mooca e o Tatuapé nos últimos tempos.
No meio da tarde, no meio da semana, no meio da vida.
Só tem um banquinho vago no balcão entre dois senhores - é uma coisa muito ligeira, não quero ir pras mesinhas.
Sento-me no banco apressada; por quê? Ah sim... o curso no final da tarde, já está quase na hora.
O objetivo é o café expresso rápido no meio do alarido. Dois minutos de respiro e "via".
Os atendentes estão ocupados; olho pra TV sem nada ver.
Enfim, um dos balconistas se aproxima; percebo que o senhor à minha esquerda ainda não foi atendido. O balconista se dirige a mim e ao senhor sem saber quem atender primeiro. Faço menção para atender primeiro o senhor e, então, olho para ele.
É um senhor distinto. Muito distinto.
Calça clara de linho, camisa leve bem passada, boina discreta confortavelmente acomodada nos macios cabelos brancos.
Pele e olhos claros.
Barba e unhas bem feitas.
Relógio de pulso clássico.
Postura ereta.
Expressão cordial e serena.
(Tenho curiosidade de sentir se usa algum perfume.)
- Boa tarde, diz ao balconista.
- O que o senhor vai querer?
- Uma média e um pão com manteiga, por favor.
Claro: o que mais poderia ser?
- Na chapa?
Claro que não.
Fico incomodada, pois só consigo observá-lo pelo canto do olho e, de repente, quero ver cada detalhe.
Amplio meu campo sensorial.
Como som ambiente, o tilintar de louças, o burburinho da gente...
Palmeiras, Corínthians, Santos...
Percebo então, que ao meu lado direito, outro senhor também está usando boina e lê um jornal; e na mesma direção, na mesinha um pouco atrás, dois senhores sentados, um de frente para o outro, conversam calmamente: o de frente pra mim também usa boina (!), o de costas, não. Puxa, que festival de boinas e de senhores com ares de outros ares!
Devagarinho, vou mergulhando (ou será que sou tragada?) por essa atmosfera; não sem a interferência, por vezes cretina, da minha mente metida a hiperativa.
Paro pra observar os dois na mesa; será que são gays?
O de boina olha pra mim.
Não; não são. No cruzar de olhares, me senti de espartilho.
Viro imediatamente a cabeça pro outro lado, meio empertigada.
A média do senhor distinto chegou. Ele aguarda o pão com manteiga olhando para a direção da TV; seu olhar atravessa a TV, a parede, a padaria... vai pra muito além desta tarde. Sigo o seu olhar e, por um instante, sinto vergonha dentro do meu jeans. Aquele olhar me faz ajeitar os saiotes antes de sair, sem esquecer de pegar a sombrinha pra proteger o rosto do sol primaveril.
- E a senhora, vai querer o quê?
Quase peço o mesmo, mas...
- Um suco de melão.
Por que eu pedi um suco de melão?
O que eu quero mesmo é continuar naquele tempo.
Ouço a folha do jornal sendo virada. As novas no velho papel...
E... NOMES!!! Sim, ouço nomes! Todos se conhecem e se chamam pelos nomes! Cumprimentam-se com sorrisos afáveis e sinceros.
Chega o pão com manteiga que é saboreado com toda a delicadeza que requer um ritual.
E, ao invés de engolir o suco num só gole, me pego bebericando-o lenta e calmamente, preocupada com meus gestos: precisam ser finos pra pertencer a esta aura de Renoir. Qualquer movimento brusco pode quebrar o encanto.
O tempo.
Por quanto tempo fiquei naquele tempo?
O suficiente pra me lembrar que tinha mesmo de ir embora: o curso, o e-mail, o compromisso, a vida.
O suco acabou; levanto-me pra sair.
Ainda posso ouvir o farfalhar dos meus saiotes enquanto caminho como uma verdadeira dama em direção ao caixa. Antes de cruzar o portal pro mundo lá fora, lanço um último olhar para os cavalheiros; o da mesa me saúda polidamente: leva a mão à boina, fazendo a discreta reverência. Sorri e fiz um pedido silencioso:
Por favor, não morram jamais.
Fila, fumaça, buzina, inferno.
Cansaço.
Café!!!
Entro numa dessas padarias high tech que povoaram maravilhosamente a Mooca e o Tatuapé nos últimos tempos.
No meio da tarde, no meio da semana, no meio da vida.
Só tem um banquinho vago no balcão entre dois senhores - é uma coisa muito ligeira, não quero ir pras mesinhas.
Sento-me no banco apressada; por quê? Ah sim... o curso no final da tarde, já está quase na hora.
O objetivo é o café expresso rápido no meio do alarido. Dois minutos de respiro e "via".
Os atendentes estão ocupados; olho pra TV sem nada ver.
Enfim, um dos balconistas se aproxima; percebo que o senhor à minha esquerda ainda não foi atendido. O balconista se dirige a mim e ao senhor sem saber quem atender primeiro. Faço menção para atender primeiro o senhor e, então, olho para ele.
É um senhor distinto. Muito distinto.
Calça clara de linho, camisa leve bem passada, boina discreta confortavelmente acomodada nos macios cabelos brancos.
Pele e olhos claros.
Barba e unhas bem feitas.
Relógio de pulso clássico.
Postura ereta.
Expressão cordial e serena.
(Tenho curiosidade de sentir se usa algum perfume.)
- Boa tarde, diz ao balconista.
- O que o senhor vai querer?
- Uma média e um pão com manteiga, por favor.
Claro: o que mais poderia ser?
- Na chapa?
Claro que não.
Fico incomodada, pois só consigo observá-lo pelo canto do olho e, de repente, quero ver cada detalhe.
Amplio meu campo sensorial.
Como som ambiente, o tilintar de louças, o burburinho da gente...
Palmeiras, Corínthians, Santos...
Percebo então, que ao meu lado direito, outro senhor também está usando boina e lê um jornal; e na mesma direção, na mesinha um pouco atrás, dois senhores sentados, um de frente para o outro, conversam calmamente: o de frente pra mim também usa boina (!), o de costas, não. Puxa, que festival de boinas e de senhores com ares de outros ares!
Devagarinho, vou mergulhando (ou será que sou tragada?) por essa atmosfera; não sem a interferência, por vezes cretina, da minha mente metida a hiperativa.
Paro pra observar os dois na mesa; será que são gays?
O de boina olha pra mim.
Não; não são. No cruzar de olhares, me senti de espartilho.
Viro imediatamente a cabeça pro outro lado, meio empertigada.
A média do senhor distinto chegou. Ele aguarda o pão com manteiga olhando para a direção da TV; seu olhar atravessa a TV, a parede, a padaria... vai pra muito além desta tarde. Sigo o seu olhar e, por um instante, sinto vergonha dentro do meu jeans. Aquele olhar me faz ajeitar os saiotes antes de sair, sem esquecer de pegar a sombrinha pra proteger o rosto do sol primaveril.
- E a senhora, vai querer o quê?
Quase peço o mesmo, mas...
- Um suco de melão.
Por que eu pedi um suco de melão?
O que eu quero mesmo é continuar naquele tempo.
Ouço a folha do jornal sendo virada. As novas no velho papel...
E... NOMES!!! Sim, ouço nomes! Todos se conhecem e se chamam pelos nomes! Cumprimentam-se com sorrisos afáveis e sinceros.
Chega o pão com manteiga que é saboreado com toda a delicadeza que requer um ritual.
E, ao invés de engolir o suco num só gole, me pego bebericando-o lenta e calmamente, preocupada com meus gestos: precisam ser finos pra pertencer a esta aura de Renoir. Qualquer movimento brusco pode quebrar o encanto.
O tempo.
Por quanto tempo fiquei naquele tempo?
O suficiente pra me lembrar que tinha mesmo de ir embora: o curso, o e-mail, o compromisso, a vida.
O suco acabou; levanto-me pra sair.
Ainda posso ouvir o farfalhar dos meus saiotes enquanto caminho como uma verdadeira dama em direção ao caixa. Antes de cruzar o portal pro mundo lá fora, lanço um último olhar para os cavalheiros; o da mesa me saúda polidamente: leva a mão à boina, fazendo a discreta reverência. Sorri e fiz um pedido silencioso:
Por favor, não morram jamais.