Fechada para balanço, olho para aquela porta que só vemos quando
fechamos os olhos. Está cheia de pó. Faz muito tempo que não me visito. Fico
ali, diante dela, indecisa quanto a abri-la; a decisão oscila entre a
curiosidade e o medo. Não me lembro de quando foi a última vez que a abri...
anos talvez? Mas o tempo da alma não está atrelado ao calendário e, portanto,
sinto que faz algumas eternidades.
A curiosidade vence o medo e estendo a mão para a maçaneta; giro-a
lentamente. A porta não se solta, está emperrada. Sei que para abri-la devo
reunir todas as minhas forças e destravá-la junto com a minha mandíbula ao som
de ranger de dentes. O que terei feito de mim?
A abertura é excruciante, o processo dói nas entranhas, nos
ossos; lembro-me de que a dor é sempre um parto: ao final, sente-se o alívio,
uma espécie de libertação pela missão cumprida. Então, evoco a deusa imaginária
que me habita, respiro fundo e me puxo para fora. Entrar em
mim é fazer com que eu saia. É provocar um novo big bang na minha história. É começar a chacoalhar meu esqueleto para espanar as
suas teias. É recontar os fatos sob o novo prisma, o desta mulher que
desconheço.
Imagens em flashes me ajudam a resgatar raízes. Algumas, podres,
precisam ser podadas; outras, vigorosas, transmutam meu gene. Olho,
maravilhada, para a transformação e, ao mesmo tempo, sinto pena da mulher
que devo deixar morrer. Na verdade, da mulher que devo matar: suas raízes
velhas obstruem caminhos, enroscam nos nervos, pesam nos ombros. É verdade que
sem ela, eu nada seria. Também é verdade que ela sempre fará parte de mim, mas
em miasmas... como todos os outros que me nutrem, miasmas do mundo, fantasmas
de histórias que precisam ser relidas, reinventadas, renascidas.
Todo nascimento é uma morte. É a constante negação do mundo e, por isso
mesmo, a chance de sua perpetuação (ahhh... filosofia!). É a abertura de uma
porta para o desconhecido. É a ousadia de se atirar para a vida que virá a seguir. O pior apego que
temos é aquele que sentimos por nós mesmos. Só posso sentir saudade daquilo que
não vigora...
Já que é assim, escancaro a porta! Liberto meus
fantasmas, meus miasmas, para que sirvam de adubo à substância amorfa do mundo.
Brado a minha vitória! Esvazio meus porões para finalmente sentir saudade de mim...