domingo, 28 de dezembro de 2014

Conto: "Perdoando Deus" | Clarice Lispector | 19/9/1970



 Escritora-Clarisse-Lispector-2Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
  clispector assinatura

Texto publicado no Jornal do Brasil em 19/9/1970 e depois no livro "A descoberta do mundo".

Extraído da página do Instituto de Psicologia da USP: link IP.USP

Hors concours

Mas... E depois? Morremos
Restará a palavra por dizer
Subvertendo princípios, análises, tratados
Restará somente a poesia
Mostrando a nossa cara deslavada
“O frio na barriga”, “o coração na mão”
“O arrepio na espinha”, “o grito na garganta”
“O aperto no peito”
Fórmulas ultrapassadas
Tudo em vão, nada nos salvará
Imbatível, persistirá apenas uma invenção sem sentido:
“Eu te amo”, alguém dirá
E os pássaros cantarão na nova aurora
Como se o mundo nunca tivesse acabado...

Depois dos 50...

Enfim, em vez de fazer contas, é melhor procurar acertá-las. Não se trata de uma corrida contra o tempo: ele está a favor e me leva de vento em popa. Busco silêncios, fontes inesgotáveis. De repente, a maioria das “coisas importantes” não passa de um tipo de purpurina flutuante que enfeitava a minha convicção pueril. Hoje lido tranquilamente com desconfortáveis e estimulantes incertezas. Hoje: portanto, não sombras, mas adubo; não fantasias, mas perspectivas. Descobri o caminho para alcançar grandes conquistas. Diante da imensa montanha, siga o curso... a trilha das formigas: sabedoria oculta há milhões de anos. No espelho, a alma despida. A maquiagem pesa. De cara limpa, o olhar vai além. Tudo o que tenho comigo para seguir adiante é uma certeza que transborda pelos olhos: fé. Não esperança, mas uma estranha fé. Em mim mesma? Em Deus? Não. No tempo. Então, curo feridas e planto sementes cuja colheita nem sempre será minha: estou aprendendo a amar. Sorvo o dia. Tinham razão as palavras mais que batidas. Abandonei a eterna busca pela felicidade em pensamentos extenuantes e complexos. É mesmo inútil. Finalmente, dou-me conta de que ela me arrebata em inusitados e singelos momentos... como aquele em que velo o sono do meu amor...

sábado, 27 de dezembro de 2014

Luna (Alessandro Safina)




(Only you can hear my soul...)

Luna tu
Quanti sono i canti che risuonano
Desideri che attraverso i secoli
Han solcato il cielo per raggiungerti
Porto per poeti che non scrivono
E che il loro senno spesso perdono
Tu accogli i sospiri di chi spasima
E regali un sogno ad ogni anima
Luna che mi guardi adesso ascoltami


(Only you can hear my soul...)

Luna tu
Che conosci il tempo dell'eternità
E il sentiero stretto della verità
Fà più luce dentro questo cuore mio
Questo cuore d'uomo che non sa, non sa
Che l'amore può nascondere il dolore
Come un fuoco ti può bruciare l'anima

Luna tu
Tu rischiari il cielo e la sua immensità
E ci mostri solo la metà che vuoi
Come poi facciamo quasi sempre noi
Angeli di creta che non volano
Anime di carta che si incendiano
Cuori come foglie che poi cadono
Sogni fatti d'aria che svaniscono
Figli della terra e figli tuoi che sai

Che l'amore può nascondere il dolore
Come un fuoco ti può bruciare l'anima
Ma è con l'amore che respira il nostro cuore
È la forza che tutto muove e illumina

(Only you can hear my soul...)

Alba lux, diva mea, diva es silentissima
Only you can hear my soul
Alba lux, diva mea, diva es silentissima

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Ofereci-lhe o copo. 
Ele me respondeu:  
"Nóis num é dessas frescura não, dona."

("dona"...)

E tomou a água nas mãos. 
E abriu o sorriso mais feliz deste mundo.  

Menos talheres... mais prazeres? 


quarta-feira, 23 de julho de 2014

Escombros


Assistimos, incrédulos, ao desmoronar do mundo: quedas de bombas, de aviões, de “pontes”, de princípios, de dignidade. De números estatísticos a horrores antissépticos, reduzimo-nos a uma vergonha canalha. Contundentes depoimentos não comovem estranhas e poderosas “entidades”, essas fantásticas invenções! Instituições etéreas que representam “interesses comuns”.
E nós? 
Continuamos assistindo, sábios e covardes, ao perfilar de escombros.
Diante do discurso e das análises profundas e impecáveis de especialistas, intelectuais, pontífices e estadistas, o sangue que se derrama é de crianças. O último recurso seria este apelo: 
a expressão da Pietà. 
Mas não se ouvem gritos de fantasmas... 
Resta órfã a nossa ingenuidade: nossa alma destroçada.
As pessoas não querem o mal. 
Não são elas que o praticam: são os “governos”, os “grupos”, as “facções”. 
As pessoas não existem. 
Apenas morrem.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Finito

era cheio de certezas

o melhor perfume
o pior filme
a melhor viagem
o pior café

terno impecável
carro do ano
filhos em Harvard

apenas uma dúvida lhe consumia

Quando?

sábado, 31 de maio de 2014

Presságio

Clio Francesca Tricarico

Penso em ti e emudeço
Tenho medo de errar a sílaba, o tom, o gesto
Não respiro
Medo que tua miragem se desfaça ao meu toque
Tua imagem é só um presságio
Fecho os olhos
Teus sussurros me embalam num sonho
No escuro, procuro os teus lábios e beijo o vento
A contragosto, sou expulsa da fantasia
Só não entendo o teu cheiro em minhas mãos...



(in 
Nosside 2013 - Antologia del XXIX Premio Mondiale di Poesia)

terça-feira, 11 de março de 2014

O tempo é o amor que vem e que vai
A vida é só o instante
em que o vivemos...

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

ieri...
nato un altro vuoto
di quel tipo che non si riempie mai

e la vita va avanti
e il mondo ignora
il mio silenzio


il dolore 
di non dimenticare mai 
quel che non si può più avere

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Se

(Cinema Paradiso - Ennio Morricone / Josh Groban)


Se tu fossi nei miei occhi per un giorno
Vedresti la bellezza che piena d'allegria
Io trovo dentro gli occhi tuoi
Ignaro se magia o realtà

Se tu fossi nel mio cuore per un giorno
Potreste avere un'idea
Di ciò che sento io
Quando m'abbracci forte a te
E petto a petto noi
Respiriamo insieme

Protagonista del tuo amor
Non so se sia magia o realtà

Se tu fossi nella mia anima un giorno
Sapresti cosa sento in me
Che m'innamorai
Da quell'istante insieme a te
E ciò che provo è
Solamente amore

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A menina e a chuva





O conhecimento alarga os confins do universo, 
mas só se desenvolve com o não conformismo. 
Os horizontes se abrem somente para quem não se resigna. 
Já dizia o filósofo, uma pena nos habituarmos ao mundo: 
não existe desperdício maior. 
Fechamos os olhos, quando o que temos diante de nós 
é uma infinidade de novos olhares. 
Heráclito, ainda te esquecem... 
É sempre a primeira vez, se não formos os mesmos. 
Afinal, o que é a chuva? 
Quando foi que me acostumei com ela e morri?

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Pensamos muito para alcançar o simples
esquecendo que não existe nada mais simples que sentir...

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Somos laços
Somos esse amálgama de todos com quem nos misturamos
Talvez a morte nos desfaça por misericórdia
Esquecer de si mesmo é preciso
Como suportar eternamente a saudade de tudo... 

de todos... 
de mim?