terça-feira, 27 de março de 2012

Fragmento 270312

Vasculhava pela memória, recolhendo seus cacos, tentando reconstruir o quebra-cabeça.
A barba cinza de seu pai amornava a manhã, enquanto a lenha era talhada em pequenos tocos. Os olhos azuis e inabaláveis de sua mãe instauravam a concretude de mais um dia. O cheiro acolhedor de café, depois de invadir os quartos, se esparramava varanda a fora, inundando a plantação com o ar energizante de "bom dia". O burburinho preguiçoso de seus irmãos, a escola e a menina com cachos dourados impecavelmente assentados pela tiara de cetim, o Nico (seu melhor amigo até o ano seguinte), tudo isso lhe devolvia vagarosamente a respiração, o volitar de um tempo que lhe permitia ter a pseudossensação de alguma certeza.
Tudo era normal e era bom que fosse assim. Os dias apenas recomeçavam sempre do mesmo ponto: o cheiro de café. E terminavam sempre do mesmo jeito: sonhos imersos no cheiro de palha antes de dormir.
Cheiros... Qual era o cheiro dele? Engraçado como não identificamos nosso próprio cheiro.
Mas um dia ele iria se livrar daquele cheiro de capim; isso sim. Ele sempre ouvia alguém falar na escola e nas festas da cidade: “aqui, ninguém tem chance de ser alguém... nasce, vive e morre joão-ninguém... único jeito é tentar a vida na cidade grande: ali sim é que tudo acontece!”
Acontece... não queria pensar nisso agora. Voltou pro cheiro de capim... verde fresco, melhor ainda depois da chuva! Açoite de vento a estalar gotículas de água e de vida; verdes crinas reluzentes a vibrar o manto da terra. Essa ária verde inflava seus pulmões e ele flutuava por cima do matagal: era rei do céu e do sol! Nada o podia impedir de ser senhor e forasteiro no seu próprio reino. Forasteiro, pois sempre tinha algo novo de si mesmo ainda por desvendar e senhor do seu nariz, mesmo que ele ainda nem soubesse limpá-lo direito.
Seu nariz, agora eternamente vermelho em constante luta com o incansável lenço de papel: maldita rinite, mal da cidade grande...
NÃO!
Não queria pensar nisso agora; voltou pro cheiro de capim...

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