Vasculhava pela memória,
recolhendo seus cacos, tentando reconstruir o quebra-cabeça.
A barba cinza de seu
pai amornava a manhã, enquanto a lenha era talhada em pequenos tocos. Os olhos
azuis e inabaláveis de sua mãe instauravam a concretude de mais um dia. O
cheiro acolhedor de café, depois de invadir os quartos, se esparramava varanda a
fora, inundando a plantação com o ar energizante de "bom dia". O burburinho
preguiçoso de seus irmãos, a escola e a menina com cachos dourados
impecavelmente assentados pela tiara de cetim, o Nico (seu melhor amigo até o
ano seguinte), tudo isso lhe devolvia vagarosamente a respiração, o volitar de
um tempo que lhe permitia ter a pseudossensação de alguma certeza.
Tudo era normal e era
bom que fosse assim. Os dias apenas recomeçavam sempre do mesmo ponto: o cheiro
de café. E terminavam sempre do mesmo jeito: sonhos imersos no cheiro de palha
antes de dormir.
Cheiros... Qual era o
cheiro dele? Engraçado como não identificamos nosso próprio cheiro.
Mas um dia ele iria
se livrar daquele cheiro de capim; isso sim. Ele sempre ouvia alguém falar na escola
e nas festas da cidade: “aqui, ninguém tem chance de ser alguém... nasce, vive
e morre joão-ninguém... único jeito é tentar a vida na cidade grande: ali sim é
que tudo acontece!”
Acontece... não
queria pensar nisso agora. Voltou pro cheiro de capim... verde fresco,
melhor ainda depois da chuva! Açoite de vento a estalar gotículas de água e de
vida; verdes crinas reluzentes a vibrar o manto da terra. Essa ária verde
inflava seus pulmões e ele flutuava por cima do matagal: era rei do céu e do
sol! Nada o podia impedir de ser senhor e forasteiro no seu próprio reino.
Forasteiro, pois sempre tinha algo novo de si mesmo ainda por desvendar e
senhor do seu nariz, mesmo que ele ainda nem soubesse limpá-lo direito.
Seu nariz, agora
eternamente vermelho em constante luta com o incansável lenço de papel: maldita
rinite, mal da cidade grande...
NÃO!
Não queria pensar
nisso agora; voltou pro cheiro de capim...
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