quinta-feira, 31 de maio de 2012

No meio da tarde

Cartório, banco, correio, farmácia.
Fila, fumaça, buzina, inferno.
Cansaço.
Café!!!
Entro numa dessas padarias high tech que povoaram maravilhosamente a Mooca e o Tatuapé nos últimos tempos.
No meio da tarde, no meio da semana, no meio da vida.
Só tem um banquinho vago no balcão entre dois senhores - é uma coisa muito ligeira, não quero ir pras mesinhas.
Sento-me no banco apressada; por quê? Ah sim... o curso no final da tarde, já está quase na hora.
O objetivo é o café expresso rápido no meio do alarido. Dois minutos de respiro e "via".
Os atendentes estão ocupados; olho pra TV sem nada 
ver
Enfim, um dos balconistas se aproxima; percebo que o senhor à minha esquerda ainda não foi atendido. O balconista se dirige a mim e ao senhor sem saber quem atender primeiro. Faço menção para atender primeiro o senhor e, então, olho para ele.
É um senhor distinto. Muito distinto.
Calça clara de linho, camisa leve bem passada, boina discreta confortavelmente acomodada nos macios cabelos brancos.
Pele e olhos claros.
Barba e unhas bem feitas.
Relógio de pulso clássico.
Postura ereta.
Expressão cordial e serena.
(Tenho curiosidade de sentir se usa algum perfume.)
- Boa tarde, diz ao balconista.
- O que o senhor vai querer?
- Uma média e um pão com manteiga, por favor.
Claro: o que mais poderia ser?
- Na chapa?
Claro que não.
Fico incomodada, pois só consigo observá-lo pelo canto do olho e, de repente, quero ver cada detalhe.
Amplio meu campo sensorial.
Como som ambiente, o tilintar de louças, o burburinho da gente...
Palmeiras, Corínthians, Santos...
Percebo então, que ao meu lado direito, outro senhor também está usando boina e lê um jornal; e na mesma direção, na mesinha um pouco atrás, dois senhores sentados, um de frente para o outro, conversam calmamente: o de frente pra mim também usa boina (!), o de costas, não. Puxa, que festival de boinas e de senhores com ares de outros ares!
Devagarinho, vou mergulhando (ou será que sou tragada?) por essa atmosfera; não sem a interferência, por vezes cretina, da minha mente metida a hiperativa.
Paro pra observar os dois na mesa; será que são gays?
O de boina olha pra mim.
Não; não são. No cruzar de olhares, me senti de espartilho.
Viro imediatamente a cabeça pro outro lado, meio empertigada. 

A média do senhor distinto chegou. Ele aguarda o pão com manteiga olhando para a direção da TV; seu olhar atravessa a TV, a parede, a padaria... vai pra muito além desta tarde. Sigo o seu olhar e, por um instante, sinto vergonha dentro do meu jeans. Aquele olhar me faz ajeitar os saiotes antes de sair, sem esquecer de pegar a sombrinha pra proteger o rosto do sol primaveril.
- E a senhora, vai querer o quê?
Quase peço o mesmo, mas...
- Um suco de melão.
Por que eu pedi um suco de melão?
O que eu quero mesmo é continuar naquele tempo.
Ouço a folha do jornal sendo virada. As novas no velho papel...
E... NOMES!!! Sim, ouço nomes! Todos se conhecem e se chamam pelos nomes! Cumprimentam-se com sorrisos afáveis e sinceros.
Chega o pão com manteiga que é saboreado com toda a delicadeza que requer um ritual.
E, ao invés de engolir o suco num só gole, me pego bebericando-o lenta e calmamente, preocupada com meus gestos: precisam ser finos pra pertencer a esta aura de Renoir. Qualquer movimento brusco pode quebrar o encanto.
O tempo.
Por quanto tempo fiquei naquele tempo?
O suficiente pra me lembrar que tinha mesmo de ir embora: o curso, o e-mail, o compromisso, a vida.
O suco acabou; levanto-me pra sair.
Ainda posso ouvir o farfalhar dos meus saiotes enquanto caminho como uma verdadeira dama em direção ao caixa. Antes de cruzar o portal pro mundo lá fora, lanço um último olhar para os cavalheiros; o da mesa me saúda polidamente: leva a mão à boina, fazendo 
a discreta reverência. Sorri e fiz um pedido silencioso: 
Por favor, não morram jamais.

2 comentários:

  1. Incrível como esse texto me deu vontade de comer pão com manteiga.
    Nossa, fabuloso!!! Você descreveu com uma perfeição dos Deuses!! Me fez entrar na história como se estivesse presente no momento!!!
    Seu talento é magnífico!! Parabéns Clio!! Beijos

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  2. Puxa, Jéssica! É muito gratificante ter esse retorno!
    Fico super feliz!
    Obrigada
    Beijos

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